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Usucapião ou Adjudicação Compulsória?

    Nos próximos parágrafos, apresento aos leitores um caso real e que demonstra o quanto a área é multidisciplinar.

    O CASO: Uma pessoa adquiriu um apartamento por meio de uma alienação fiduciária (financiamento imobiliário) junto a um Banco Estadual. Efetuou o pagamento das parcelas por alguns anos, porém, ao ficar sabendo que o Banco “quebrou” e que várias pessoas estavam tendo problemas com seus imóveis, ela simplesmente parou de pagar as parcelas.

    Após mais de 10 anos de sua aquisição e pelo menos 7 anos sem qualquer pagamento, o Comprador tomou ciência de que a Construtora também “fechou as portas”.

    Ressalte-se, que durante todo esse período o Comprador não foi notificado, nem extrajudicialmente, nem judicialmente, pela sua mora em relação a ausência de pagamento. Houveram algumas solicitações de seu contrato junto ao Banco, mas este nunca fora enviado.

    Alguns anos após, o Comprador recebeu uma Intimação da Justiça do Trabalho e tomou ciência de que o seu apartamento já estava com a indisponibilidade decretada, bem como com a penhora determinada, referente a um débito da antiga construtora (proprietária registral).

    Ante a informação, compareceu ao cartório no ano de 2020 e solicitou a certidão de inteiro teor do imóvel, momento em que ficou ciente de que:

    a) o imóvel ainda se encontrava em nome da Construtora;

    b) que havia uma penhora averbada na matrícula do imóvel (no caso a do processo trabalhista);

    c) e que também, havia uma hipoteca em nome da construtora referente a incorporação imobiliária para a construção do prédio, averbada em 1987;

    d) Verificou ainda, que o Banco não havia registrado o contrato de alienação fiduciária na matrícula do imóvel, ou seja, o nome do comprador não aparecia vinculado ao imóvel.

    Ressalte-se que o comprador já tinha IPTU em seu nome, contas de energia, condomínio e tendo a posse do imóvel com “animus domini”.

    Pois bem, caros leitores, como regularizar esse imóvel e transferi-lo para o nome do Comprador?

    Primeiro deve-se atentar para o gravame, problema mais urgente que incide sobre a matrícula do imóvel: penhora do débito trabalhista, considerando que o imóvel poderia ir a leilão a qualquer momento. Então, o que fazer?

    Nesse caso, foi manejado os embargos de terceiro, meio de impugnação previsto do artigo 674 do Código de Processo Civil, que assim preconiza:

    “Quem, não sendo parte no processo, sofrer constrição ou ameaça de constrição sobre bens que possua ou sobre os quais tenha direito incompatível com o ato constritivo, poderá requerer seu desfazimento ou sua inibição por meio de embargos de terceiro.”

    Ainda que o comprador não tivesse a quitação do preço, foi colacionado aos embargos, os pagamentos realizados (como pagamento da entrada, utilização de FGTS), contrato de compra e venda realizado com a construtora Ré no processo trabalhista, comprovando a existência da compra anterior ao início do processo, contas antigas de luz, condomínio em seu nome, entre outros.

    Desta forma, o pedido foi acolhido pelo Juízo, tendo sido expedido um ofício para a baixa da penhora. Ato contínuo, foi protocolado um requerimento no Cartório de Registro do imóvel em questão, e foi realizada a baixa do gravame.

    Mas e como regularizar para o nome do Comprador?

    Poderíamos incialmente pensar no instituto da Adjudicação Compulsória, porém, essa forma de regularização não pode ser aplicada a esse caso, e eu explico o porquê:

    A adjudicação compulsória é, em verdade, instituto de direito processual civil que visa garantir o cumprimento do artigo 1.418 do Código Civil [1], e preconiza que:

    “O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel.

    Leciona Ricardo Arcoverde Credie [2] que a adjudicação compulsória é:

    “A ação pessoal que pertine ao compromissário comprador, ou ao cessionário de seus direitos à aquisição, ajuizada com relação ao titular do domínio do imóvel – que tenha prometido vende-lo através de contrato de compromisso de venda e compra e se omitiu quanto à escritura definitiva – tendente ao suprimento judicial desta outorga, mediante sentença constitutiva com a mesma eficácia do ato não praticado.”

    A adjudicação compulsória tem como requisitosa) a existência de um contrato de compra e venda; b) a recusa injustificada do vendedor em outorgar a escritura definitiva ao comprador; ou quando não for possível saber a sua localização; c) e tem que haver prova inequívoca da quitação integral do preço.

    Ressalte-se que de acordo com a Súmula 239 do STJ, a adjudicação compulsória não está condicionada ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.

    Aproveitando o ensejo, faz-se mister abrir um parêntese para falar da recente inovaçao/alteração legislativa que criou a possibilidade da adjudicação extrajudicial de imóvel, diretamente no registro da situação do respectivo imóvel, desde que preenchidos certos requisitos, conforme a Lei 14.382/22, que acrescentou o artigo 216-B na Lei de Registros Publicos nº 6.015/73 [3]:

     Art. 216-B. Sem prejuízo da via jurisdicional, a adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão poderá ser efetivada extrajudicialmente no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel, nos termos deste artigo.

    § 1º São legitimados a requerer a adjudicação o promitente comprador ou qualquer dos seus cessionários ou promitentes cessionários, ou seus sucessores, bem como o promitente vendedor, representados por advogado, e o pedido deverá ser instruído com os seguintes documentos:

    I – instrumento de promessa de compra e venda ou de cessão ou de sucessão, quando for o caso;

    II – prova do inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de 15 (quinze) dias, contado da entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de títulos e documentos;

    III – (VETADO);

    IV – certidões dos distribuidores forenses da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente que demonstrem a inexistência de litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda do imóvel objeto da adjudicação;

    V – comprovante de pagamento do respectivo Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI);

    VI – procuração com poderes específicos.”

    Fechando o parêntese e retornando ao caso apresentado, não foi possível a aplicação desse instituto, pois o Comprador não tinha a quitação do preço, e esse requisito é indispensável.

    A usucapião, na sua forma extrajudicial, foi a saída encontrada para a regularização desse imóvel. Embora pareça clichê, a escolha pela usucapião deve ser sempre a ultima ratio, ou seja, deve ser a ultima medida de todas a ser tomada.

    No caso, o comprador optou pela modalidade extrajudicial por ser mais célere o seu trâmite, mas existe também a modalidade judicial.

    O procedimento do usucapião extrajudicial vem estabelecido no artigo 216-A, da Lei 6.015/73 – Lei de Registros Publicos, e regulamentado pelo Provimento 65/2017 [4] do CNJ.

    O procedimento de usucapião extrajudicial deve ser processado diretamente no ofício de registro de imóveis da circunscrição em que estiver localizado o imóvel usucapiendo ou a maior parte dele. O requerimento deve ser formulado pelo requerente, obrigatoriamente representado por um advogado e deve vir acompanhado, além de outros documentos, de uma ata notarial, na qual deverá constar a declaração de tempo de posse do interessado e da inexistência de ação possessória ou reivindicatória envolvendo o respectivo imóvel.

    Apesar de ser obrigatória a apresentação da planta e memorial descritivo, no caso em questão, por se tratar de unidade autônoma de condomínio edilício, essa apresentação foi dispensada, bastando que o requerimento faça menção à descrição constante da respectiva matrícula.

    Com relação a anuência dos confrontantes, neste caso também foi dispensada, pois se tratava de condomínio edilício regularmente constituído e com construção averbada, bastando somente a anuência do síndico do condomínio.

    Então como ele residia neste imóvel há mais de 10 anos, foi dado entrada no procedimento de usucapião extrajudicial na modalidade ordinária, nos moldes do artigo 1.242 do Código Civil, que exige: a) exercício da posse por 10 anos ininterruptos; b) justo título (no caso o contrato de compra e venda); c) e boa- fé.

    Desta forma, finalizado o procedimento, ao ler atentamente a escritura, constatou-se que o Cartório não efetuou a baixa do gravame referente à hipoteca, direito real de garantia que existia entre o antigo proprietário e um determinado banco, há época da incorporação imobiliária em 1987.

    Insta mencionar que, segundo a remansosa doutrina e a pacifica jurisprudência dos Tribunais superiores, a usucapião é forma de aquisição originária da propriedade imobiliária e, sendo assim, deveria vir desacompanhada de qualquer gravame anterior. Entretanto, o cartório se recusou a dar baixa.

    Considerando que o comprador tinha pressa em que o imóvel fosse para a sua titularidade, foi lavrada a escritura com o gravame, e posteriormente foi protocolado um novo requerimento no cartório de registro do respectivo imóvel para que fosse realizado a baixa do gravame, sob os seguintes argumentos:

    a. Usucapião se trata de aquisição originária, devendo vir livre quaisquer ônus;

    b. Aplicação da Súmula 308 do STJA hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”

    c. A hipoteca é direito real de garantia que incide sobre coisa alheia e recai sobre bens imóveis, como regra, não havendo a transmissão da posse da coisa entre as partes. [5]

    d. A hipoteca está sujeita a prazo decadencial de 30 anos, de acordo com o artigo 1.485 do Código Civil, que se inicia na data do contrato, e não na data da averbação. Ou seja, por ser prazo decadencial, não está sujeita as causas impeditivas, suspensivas, e interruptivas resguardas ao instituto da prescrição. Assim, após o decurso do prazo legal de trinta anos, sem a devida prorrogação ou celebração de novo contrato, a hipoteca perderá por absoluto os seus efeitos.

    Nos termos do art. 248 da Lei nº 6.015, de 1973, o cancelamento do registro efetuar-se-á mediante averbação. Trata-se de averbação que independe de ordem judicial, uma vez que se extrai diretamente por força de prazo decadencial legalmente estabelecido.

    Faz-se mister esclarecer que não é possível usucapir imóvel que foi financiado pelo SFH, já que o investimento de dinheiro público na aquisição e construção do imóvel via Sistema Financeiro de Habitação (SFH) torna impossível que ele seja alvo de usucapião, mesmo que esteja abandonado. ( REsp 1.874.632, STJ)

    Por fim, é importante se atentar, que no caso apresentado, só foi possível usucapir porque o contrato de financiamento, não se sabe por qual razão, talvez por um descuido do banco, não foi averbado na matrícula do imóvel.

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